Comunicação & Inovação, v. 19, n. 39, jan-abril 2018, p. 50-66. Disponível em: https://seer.uscs.edu.br/index.php/revista_comunicacao_inovacao/article/view/4961
Entrevista com a autora Maria Eugênia Porém (UNESP)
Entrevistadora: Isabela Nizer (Graduanda em Comunicação Organizacional – UTFPR)
Isabela: De onde surgiu o seu interesse pela pesquisa sobre o papel da comunicação em micro e pequenas empresas?
M.E.: O interesse surgiu porque eu trabalhei 27 anos na iniciativa privada. Quando eu fui para a Unesp, eu entendi que a minha pesquisa teria que se apropriar dessa experiência de tantos anos trabalhando em organizações. A micro e a pequena empresa, eu entendi que seria um foco, um dos focos da minha pesquisa, um dos objetivos dos estudos que eu estava desenvolvendo na área de Comunicação Organizacional, justamente por representarem 99% das empresas do Brasil e por elas serem, de uma forma bastante paradoxal, tratadas como ilustre desconhecidas. Na verdade, quando a gente estuda as micro e as pequenas empresas, nós entendemos que elas são percebidas como um apêndice da economia e não como um sustentáculo. Ao longo dos anos em que eu venho, de certa maneira, me aprofundando nesse estudo sobre as micro e as pequenas empresas, eu acabo percebendo o quanto elas são importantes para o desenvolvimento local, para o desenvolvimento de bairros da cidade do interior, mas que, ao mesmo tempo, não são dadas a elas (não é reconhecido, na verdade) essa importância, esse valor que elas têm para a economia local. Então, a micro e a pequena empresa acabam representando um dos escopos, um dos objetivos dos meus estudos na área de Comunicação, e elas vêm se somar a outros estudos, porque, na verdade, a minha intenção é entender o processo comunicativo nas organizações. Então, de maneira geral, é isso.
Isabela: Qual é a relevância do tema “inovação nas organizações” para você? Senão por motivos econômicos, a motivação principal para inovar seria o bem-estar dos agentes organizacionais?
M.E.: A relevância é muito fundamentada na importância da temática, numa tendência que vem surgindo desde a década de 90, do foco em desenvolvimento de inovações. A inovação no Brasil acaba sendo, na verdade, o Calcanhar de Aquiles, já que está muito aliada à questão do desenvolvimento tecnológico, e o Brasil não tem tecnologia de ponta, né? E, dessa maneira, acaba despertando o interesse de vários pesquisadores, inclusive o meu também. Ela é relevante para as organizações na medida em que a inovação acaba, de certa maneira, não só impactando na questão da competitividade das organizações, que isso é um dos pontos, mas não é o principal ponto que eu abordo nos meus estudos. Eu abordo a questão da inovação como uma mudança de modelo mental da organização em relação às questões ligadas ao cotidiano organizacional, aos processos organizativos. O foco na inovação, dos meus estudos, está muito relacionado à geração de maior qualidade de vida, de maior bem-estar, de uma incorporação de um modelo de organização que contradiz o modelo de organização mecanicista que a gente está muito habituada a ver. As organizações, muitas delas, ainda não quebraram com o paradigma industrial da sociedade moderna e elas vêm reproduzindo determinados modelos mentais que, na verdade, vamos dizer, metaforicamente, comparam as organizações a uma máquina e os humanos, os funcionários, os empregados, a uma engrenagem. Isso, de certa maneira, desumaniza as relações das organizações, e quando a gente olha a partir da perspectiva que é o estudo de inovação, ela vem não só para gerar capacidade competitiva (que isso para nós não é o mais importante), mas acima disso, sobretudo, ela vem gerar um novo modelo mental de gestão, de olhar para as pessoas, dessa valorização humanitária que deve existir dentro das organizações. É esse o sentido principal que a gente busca trabalhar, o motivo pelo qual estudamos a inovação nas organizações.
Isabela: O profissional de Comunicação Organizacional deve incentivar os agentes de uma organização de modo que ela se torne mais “corajosa” diante dos riscos da inovação?
M.E.: Bom, a toda inovação, o risco é inerente, né? A mudança é inerente, então ela acaba causando alguns impedimentos. Por quê? Como eu disse na resposta anterior, nós ainda estamos muito impregnados com o modelo de uma organização que controla, que disciplina. E a inovação, na verdade, ela é o contrário disso. Ela alimenta o risco, ela alimenta a incerteza, ela alimenta o acaso, e isso acaba, de certa maneira, causando certo caos nas organizações que pretendem ser inovadoras. Então, a questão de elas se tornarem corajosas diante dos riscos é, como eu disse, uma questão de propósito mesmo. Quando a organização se coloca e entende que precisa ser inovadora, ela vai se colocar em função das mudanças, das transformações. Esse é um ponto, vamos dizer, mais difícil, nevrálgico, que existe no processo de inovação, e é justamente onde a gente estuda a comunicação transformadora, aquela comunicação que realmente acaba promovendo um processo de mudança de mentalidade dessa organização.
Isabela: Mesmo as MPE mais recentes apresentam caráter conservador, com uma cultura funcionalista e instrumental? Os especialistas do Programa ALI chegaram a ter contato com uma organização mais nova?
M.E.: Vamos dizer que, tradicionalmente, as organizações, de maneira geral, independente de seu segmento, de seu tamanho, enfim, elas têm esse caráter mais conservador e que, óbvio, acaba impactando na questão da inovação, na questão da mudança, na questão da transformação da mentalidade, né? Com certeza, esse caráter conservador está muito ligado a uma cultura organizacional que instrumentaliza, que coisifica os processos que são iminentemente humanos das organizações. Então, isso acaba, de certa maneira, impregnando o contexto organizacional, criando determinados paradigmas em relação à questão do trabalhador, à questão do trabalho como algo mais funcional mesmo, ligado muito às tipificações mais funcionais, de cargo, de funções, mais tarefeiros. Isso acaba, de certa maneira, impactando, logicamente, no papel que a organização poderia exercer enquanto agente de transformação. Os especialistas do programa ALI focalizaram muito nas micro e pequenas empresas mais tradicionais, então, assim, a maioria dos agentes ALI não teve muito acesso a organizações que tenham uma característica mais diluída, menos funcionalista. Os ALIS disseram que a maioria das micro e pequenas empresas que eles atendiam tinha, realmente, esse caráter conservador no seu modelo de gestão. Isso, de certa maneira, também impacta no modelo de comunicação que é adotado, ou seja, no sentido da comunicação que existe, no conceito de comunicação que existe, né? A comunicação também acaba, de certa maneira, coisificando, instrumentalizando os processos, as relações sociais que existem nessas organizações.
Isabela: Na tentativa de criar uma cultura de inovação na MPE, o profissional de Comunicação Organizacional deve, antes de tudo, buscar mudar a mentalidade do dono da empresa, tendo em vista o modelo predominante de gestão?
M.E.: Vamos dizer que sim, né? Na micro e pequena empresa, em especial, a figura do dono é muito representativa, é muito forte. Ele contextualiza muito, ele influencia muito a cultura organizacional e, obviamente, a gestão, como parte dessa cultura, está condicionada a isso. O profissional de Comunicação Organizacional, quando ele tem essa denominação na micro e pequena empresa, o que é raro, porque nós não vemos um departamento ou um profissional que cuida especificamente da comunicação organizacional nas micro e pequenas empresas, isso pelo menos das que eu tenho acesso, é raro, muito difícil de se encontrar […]. Agora, com certeza, a comunicação, quem estiver lidando com a comunicação e estiver buscando o desenvolvimento de uma cultura de inovação (e cultura tem a ver com cultivo, ou seja, é processual), o dono da empresa deve ser o primeiro a ser, vamos dizer assim, “impactado” por essa comunicação. A mentalidade, esse modelo mental que é muito impregnado pelo dono da empresa, precisa ser alterado, e aí essas condições ligadas à cultura de inovação (que estão relacionadas à mudança, à transformação, à maior liberdade de expressão, ao incentivo de ideias, de geração de ideias) precisam, obviamente, ser transformadas também.
Isabela: Um dos entrevistados em sua pesquisa apontou que as MPE enxergam a inovação como grandes investimentos e não como “simplesmente uma mudança nunca realizada”. A inovação é tudo aquilo que é novo dentro da própria organização (sem necessariamente comparar com organizações concorrentes)?
M.E.: São várias as formas de entender o conceito de inovação, ele é muito polissêmico. A gente sempre fala que o conceito de inovação está no olhar de quem observa, então, assim, a partir daquilo que a inovação me representa (especificamente ligada à micro e pequena empresa, que tem várias limitações). Por exemplo, uma micro e pequena empresa não tem um setor de pesquisa e desenvolvimento como as grandes empresas, multinacionais, têm. Então, o desenvolvimento da inovação acaba tendo algumas dificuldades. Até pela própria constituição da micro e da pequena empresa aqui no Brasil, elas estão muito ligadas à abertura de empresas por necessidade e não, necessariamente, por se enxergar uma oportunidade no mercado, né? Por exemplo, isso é uma característica das startups. Elas surgem enxergando uma grande oportunidade de mercado, e, aí, a inovação faz parte da mentalidade desde o surgimento, do nascimento dessa empresa. A micro e pequena empresa, a história dela é uma história de luta, na verdade, de pessoas que, por exemplo, perdem a sua capacidade de empregabilidade e acabam, muitas vezes, optando por abrir uma micro e pequena empresa para fugir do desemprego. Então, assim, fica difícil explicar em poucas palavras, né, mas o contexto que envolve a micro e pequena empresa desde o seu nascimento é um contexto, na verdade, de muita luta, de muitos desafios. Não que a grande não tenha, mas são outros. A gente sempre diz que a capacidade do capital, o capital financeiro, acaba gerando outros capitais, e isso acaba, quando relacionado à micro e pequena empresa, criando alguns impedimentos. Então, quando você vai lidar com micro e pequena empresa, você tem que se despir um pouco das coisas que normalmente a gente vê nas revistas, na revista EXAME, na VOCÊ S/A., porque as referências que existem são muitas referências da grande empresa, né? A micro e pequena empresa, até nisso, na geração de informação sobre ela, acaba, de certa maneira, a desfavorecendo. Não favorecem que a gente enxergue a micro e pequena empresa com todo o potencial que existe nela, né? Apesar de todas essas questões que já foram apontadas, existe uma representação da inovação muito fundamentada na mídia, que acaba colocando a inovação como um ato de um “grande herói”. Inovar está ligado a grandes investimentos, está ligado, normalmente, à tecnologia, e quando isso chega para a micro e pequena empresa, para o dono dela, por exemplo, chega como uma ameaça. Ele fica numa situação muito complicada, porque, ao mesmo tempo em que a agenda midiática acaba dizendo que, se ele não inovar, ele não vai sobreviver, ele acaba entendendo que “nossa! a tecnologia é cara, como que eu vou introduzir uma inovação na minha empresa se eu não tenho capital pra isso?”. Então, ele vive num dilema, na verdade. O que o ALI, o Sebrae tenta passar e, de certa maneira, é algo que eu também compreendo, é que, se ele conseguir minimamente trazer pequenas novidades para a organização, trazer pequenas mudanças, de alguma maneira, a partir da ótica de uma pequena empresa que quase não faz nada, que não introduz quase nenhum tipo de novidade nos seus processos, isso acaba gerando alguns benefícios, acaba potencializando alguns diferenciais, e que a gente entende que isso pode ter um aspecto de inovação. Então, quando a gente fala de cultura de inovação, nós falamos em: “vamos cultivar comportamentos, vamos cultivar percepções que estejam ligadas a esses pequenos papéis, a pequenas atitudes que são feitas diariamente na organização, para que se torne uma organização melhor”. E, aí, é nesse aspecto que a gente acaba dizendo que a inovação não precisa ser encarada como um grande investimento, ela tem que ser encarada, antes de tudo, como uma mentalidade que está aberta a essas novidades, que está aberta a essas mudanças.
Isabela: No caso das MPE envolvidas na pesquisa do Programa ALI, demoraram dois anos para que pequenas evidências de mudanças surgissem. Em sua opinião, é possível ou correto imaginar um prazo médio em que a comunicação consiga transformar a visão da inovação de uma organização?
M.E.: Não. Não é possível e nem correto imaginar um prazo médio. A comunicação é, antes de tudo, uma atitude, uma mudança de conceitos sobre comunicação. Quando a gente pensa comunicação como a grande energizadora, a potencializadora da cultura de inovação, a gente está dizendo que, antes, a empresa precisa ter uma mudança de conduta, uma visão de comunicação, né? Colocar a comunicação como protagonista desses processos. Normalmente, ela não é vista assim, né? Nós não temos essa perspectiva de uma comunicação transformadora que potencialize os processos organizacionais, que realmente apoie a organização na sua forma de se transformar, de inovar, ela não é uma visão diluída, capilarizada, né? É uma visão restrita ao nosso universo acadêmico. A micro e pequena empresa é consumida pelos seus problemas diários, e a comunicação é tão natural e óbvia que parece que a gente não precisa pensar nela. Na micro e pequena empresa isso se torna tão evidente que é difícil a gente colocar um prazo para que isso aconteça. Ela é muito processual, tem que ser muito orgânico esse processo. Então, assim, transformar a organização para uma cultura de inovação, na minha opinião, é preciso que, antes, essa atitude, essa visão, essa percepção sobre o protagonismo da comunicação, seja transformado. E, para isso, é preciso de incentivos diários, de constantemente inverter a lógica do cotidiano dessas empresas que são consumidas pelos problemas, que trabalham muito numa lógica de “apagar incêndios”, vamos dizer assim. São muitos desafios diários que envolvem as pequenas empresas, e esses desafios diários são tão poderosos que consomem a atividade do gestor, que poderia ser mais estratégica. Quando uma atividade é mais estratégica, ela tem tempo de pensar em processos mais estratégicos, no caso, os processos comunicativos são muito estratégicos. O problema é que o pequeno empresário é consumido pelo seu dia a dia e isso acaba, de certa maneira, impedindo que ele pense estrategicamente. Ele acaba virando, na verdade, um tarefeiro, né? Ele acaba instrumentalizando o seu dia a dia em atitudes tarefeiras e pouco estratégicas.
Isabela: Num futuro próximo, como podemos enxergar o mercado das micro e pequenas empresas aos profissionais da Comunicação Organizacional?
M.E.: Eu proponho até uma inversão aqui. Eu acho que a gente vai conseguir despertar as micro e pequenas empresas para a Comunicação Organizacional, que hoje é um ponto muito difícil de se obter; como também a gente inverter quando a gente começar a trabalhar a micro e pequena empresa na formação dos estudantes. Eu percebo que existe o preconceito em relação à micro e pequena empresa, à visão do pequeno, do mínimo, do apêndice, do acessório à economia de um país, enfim. Esse preconceito é impregnado não só no mercado, não só no meio das micro e pequenas empresas, no meio consumidor, mas também nas escolas, nas universidades, né? Eu enfrento muito isso na formação dos estudantes de Relações Públicas, por exemplo. Quando eu pergunto para eles o que eles querem fazer depois que se formam, muitos: “ah, vou fazer um trainee numa grande empresa, eu quero entrar numa multinacional”, e ninguém olha para a micro e pequena empresa, então eu acho que isso também é um papel nosso enquanto professores, enquanto estudantes de Comunicação, tirar um pouco essa lente mais discriminatória, que marginaliza os tipos de empresa que saem do grande capital, das grandes empresas, das empresas que aparecem nas páginas da EXAME, da VOCÊ S/A. Eu acho que a gente precisa trabalhar cada vez mais com enfoques que vão favorecer o desenvolvimento local. Esses enfoques estão necessariamente relacionados à questão das pequenas empresas, das startups, que fomentam o emprego, que garantem que os impostos da cidade sejam direcionados para a saúde, educação, enfim. Nós precisamos debater mais as micro e as pequena empresas nas universidades. Eu acho que está muito relacionado a essa mentalidade que foi criada, a essa cultura que foi criada do grande, né? De que o grande é o que tem sucesso. Eu sempre falo paro os meus alunos que um exemplo disso são as representações das micro e pequenas empresas nas novelas, por exemplo. Nós vemos as micro e as pequenas empresas sempre relacionadas à coisa pequena. Vamos pegar aquela novela que teve o Félix. Ele era uma pessoa má e trabalhava num grande hospital, e, como em todo enredo de novelas, o bem tem que vencer o mal. E quando o Félix foi punido, ele foi trabalhar vendendo cachorro-quente, ou seja, ele foi rebaixado a ser um funcionário de uma pequena empresa. Então, essas representações acabam sedimentando esse preconceito, essa discriminação, essa visão que a gente tem de que a empresa, a pequena empresa, não é pequena só no tamanho, mas ela também não serve para as nossas vidas, né? Sendo que elas são o sustentáculo da economia local, elas são super importante para o desenvolvimento de cidades. Então, eu acho que a Comunicação Organizacional, aquilo que a gente ensina de Comunicação Organizacional, ela também deve ser olhada, deve ser colocada para os estudantes, por exemplo, olhando para essas micro e pequenas empresas, não só para as grandes, para as multinacionais, enfim. Eu acho que é isso.
Entrevista gravada em 17 de abril de 2019.